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Corte Interamericana sentencia Brasil por violação de direitos de quilombolas em Alcântara (MA)
Costa Rica – A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) considerou, nesta quinta-feira (13), o Estado Brasileiro culpado por sistemáticas violações de Direitos Humanos das comunidades quilombolas em torno do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na região metropolitana de São Luís, Maranhão. Esta foi a primeira vez que o Estado Brasileiro foi julgado em caso envolvendo comunidades quilombolas e a primeira vez que as Forças Armadas Brasileiras são confrontadas num tribunal internacional.
A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2001 por representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, o Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), a Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e a Defensoria Pública da União (DPU).
As violações denunciadas são decorrentes da instalação da base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB), bem como pela omissão do Estado Brasileiro em conferir os títulos de propriedade definitiva para os quilombolas. Além das desapropriações e remoções compulsórias, a perda do território impactou o direito à cultura, alimentação adequada, livre circulação, educação, saúde, saneamento básico e transporte de milhares de pessoas que residem na região.
Na notificação de sentença, a presidente da Corte IDH, juíza Nancy Hernández López, afirmou que o Estado Brasileiro é internacionalmente responsável por violar o direito de propriedade de 171 comunidades quilombolas localizadas no município de Alcântara. Pela decisão, o Brasil deve garantir a consulta prévia, livre e informada em tudo o que afetar as comunidades; a proteção da vida digna das famílias e garantias de alimentação adequada; além de participação da vida cultural aos quilombolas.
A Corte IDH também frisou a importância da manutenção do diálogo permanente entre o Estado Brasileiro e a comunidade, garantindo proteção judicial, aos cultos religiosos, o livre acesso ao território pelos quilombolas e a propriedade coletiva das comunidades, afirmando que o governo brasileiro deve promover a titulação das terras, com a devida delimitação e demarcação. O governo também deverá atuar na indenização por danos materiais sofridos pelos quilombolas e realizar ato público de reconhecimento das violações ocorridas nos últimos 40 anos.
O defensor público federal Yuri Costa, que atuou no caso, considera o resultado do julgamento um marco para as comunidades quilombolas do Brasil. “Pela primeira vez, o sistema internacional de direitos humanos julga o Estado brasileiro pela violação a direitos de comunidades quilombolas. Nesse sentido, Alcântara é bastante representativa da luta histórica da população negra no Brasil. São mais de quatro décadas resistindo a um projeto de Estado que envolve ações e omissões dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e abarca atos das esferas federal, estadual e municipal”, conclui.
Durante a principal audiência no processo, o defensor destacou os diversos problemas da instalação e operação do CLA. “As comunidades e famílias foram removidas compulsoriamente; não foram realizados estudos de impacto social, ambiental ou cultural, visando compreender as particularidades da estrutura agrária e da identidade étnica das comunidades, além do fato do Centro de Lançamento não possuir licença ambiental regularmente emitida”, afirmou Costa.
A DPU também defendeu que, além da obrigação de realização da consulta dos povos da região, em se tratando de um grande projeto que tem o potencial de afetar os modos de vida ou de subsistência de várias comunidades tradicionais, o Estado só poderia efetivamente concretizar a expansão do CLA com o consentimento das comunidades quilombolas, em consonância com decisão de 2007 da Corte IDH em relação ao Caso Saramaka vs. Suriname.
Veja o resumo da sentença publicado pela Corte IDH.
Entenda o caso
O projeto do Centro de Lançamento de Alcântara começou a ser elaborado ainda na década de 1970 pela Força Aérea Brasileira (FAB). Durante sua construção, já na década de 1980, foram desapropriadas de suas terras 312 famílias de 32 povoados que compõem o território étnico de Alcântara. Essas comunidades foram reassentadas em sete agrovilas e enfrentam até hoje os impactos dessa mudança forçada, com dificuldades de renda e na produção de alimentos.
Já as comunidades que permaneceram em seus territórios tradicionais estão desde então, nestes mais de 40 anos, sob constante tensão e ameaças de novas expulsões para expansão da base aérea pelo litoral, com projetos planejados e/ou executados pelo Estado, sem nenhum tipo de consulta ou participação popular. A situação gera uma enorme insegurança sobre o futuro das várias comunidades quilombolas.
Entre as violações mais recentes, destaca-se a ação arbitrária no território em 2008, o que levou as lideranças de Alcântara a denunciarem o Estado à Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, por descumprimento da Convenção 169 no Projeto Alcântara Cyclone Space – Acordo de Cooperação Tecnológica Brasil – Ucrânia. As empresas contratadas invadiram e depredaram roças das comunidades de Mamuna e Baracatatiua na tentativa de implantar outros três sítios de lançamento de aluguel.
Em 2019, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado pelo governo de Jair Bolsonaro com os Estados Unidos, com finalidades comerciais, ignorou até mesmo a recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) feita na segunda audiência sobre o caso de realizar estudo e consulta prévias aos quilombolas.
No ano seguinte, em meio à pandemia de Covid-19, o governo brasileiro determinou novas remoções para o projeto – que afetariam ao menos 800 famílias, principalmente das comunidades de Mamuna e Canelatiua. O despejo, no entanto, foi suspenso pela Justiça e, após o Senado dos EUA vetar o uso de dinheiro do país para a remoção das comunidades quilombolas, o Brasil revogou a resolução.
Em 2023, pouco antes das audiências, houve nova invasão. Moradores do Quilombo Vista Alegre, em Alcântara, foram vítimas de uma violenta tentativa de despejo. Militares da FAB e agentes da Polícia Federal invadiram uma parte do território, ferindo várias pessoas, inclusive crianças, mulheres e idosos. Foram usadas balas de borracha e gás lacrimogêneo.
A ação
A denúncia foi considerada admissível pela CIDH em 2006. No relatório de mérito emitido em 2020, após duas audiências (em 2008 e em 2019), a Comissão recomendou que fosse feita a titulação do território, a consulta prévia em relação ao acordo firmado junto aos Estados Unidos, a reparação financeira dos removidos compulsoriamente e um pedido de desculpas público. Como nada disso foi cumprido e diante da gravidade dos fatos, em janeiro de 2022, a Comissão Interamericana levou o caso à Corte.
O processo de titulação das terras estava em aberto desde o ano de 2008 sem nenhuma efetiva mudança ou qualquer sinalização de encaminhamento, o que comprometia ainda mais a garantia da organização e vida das famílias na região, com o governo resistindo em realizar a titulação das terras. As comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares em 2004 e identificadas e delimitadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2008. A DPU defendeu que a conclusão da titulação deveria ser anterior a qualquer tipo de discussão e avanço sobre possibilidades de expansão do CLA.
O julgamento foi iniciado em abril de 2023, quando durante dois dias a CIDH focou as atenções no Brasil. Foram realizadas audiências que ouviram a população quilombola da região, especialistas, movimentos sociais, instituições e o governo brasileiro. Durante a audiência, o Estado Brasileiro reconheceu, de forma pública, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara, com um pedido de desculpas formal e informou que disponibilizaria declaração pública em página oficial do governo federal.
O governo federal também sinalizou o comprometimento em viabilizar a destinação de recursos financeiros para compensação das violações, com o objetivo de implementar políticas públicas que beneficiem diretamente as comunidades, a título de reparação coletiva. Foi criado em 2023, pouco antes das audiências, um Grupo de Trabalho Interministerial para tratar do tema. O grupo, porém, não teve avanços significativos nas reparações aos quilombolas e sequer contou com a participação das entidades responsáveis pela ação na Corte, o que causou seu esvaziamento após a saída das quatro lideranças comunitárias.
Em setembro de 2024, o governo federal firmou acordo para a entrega de títulos de domínio às comunidades quilombolas de nove estados brasileiros, entre elas as de Alcântara (MA). Foram entregues no total 21 títulos que destinam 120 mil hectares a 19 comunidades, beneficiando diretamente 4,5 mil famílias e consolidando a área atual do CLA. Na data, foi assinado o Decreto n° 12.190/2024, que declarou de interesse social os imóveis rurais abrangidos pelo território quilombola de Alcântara, passo fundamental para o processo de titulação da área.
Sobre a Corte
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é um dos três tribunais regionais de proteção de direitos humanos, juntamente com as cortes Europeia e Africana de Direitos Humanos. É uma instituição judicial autônoma cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica – tratado internacional que estabelece direitos e liberdades que devem ser respeitados pelos Estados-parte, incluindo o Brasil.
O Tribunal exerce competência contenciosa, o que confere a atribuição de resolução de litígios e supervisão de sentenças. Também exerce função consultiva, além de proferir medidas provisórias. A Convenção Americana estabelece que a Comissão Interamericana e a Corte IDH são órgãos competentes para conhecer de assuntos relacionados ao cumprimento de compromissos contraídos pelos Estados Partes signatários do tratado.
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* Esta matéria foi produzida conforme os seguintes objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Agenda2030: 10- Redução das desigualdades 12- Consumo e produção responsáveis 16- Paz, Justiça e Instituições eficazes
DCC / ACAG
Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União