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Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo: por uma nova vida para migrantes
São Paulo – O motorista de carreta venezuelano José* não tinha ideia de como sua vida mudaria em pouco mais de dois anos. A história que vamos contar começou em junho de 2019 na cidade de Caracas, Venezuela, país que passa pela maior crise de sua história desde 2016. Sem emprego, sem comida e sem nenhuma perspectiva de melhora, José tomou uma drástica decisão, deixar sua família em Caracas – uma esposa grávida de dois meses e três filhos – para buscar meios de sobrevivência em outro país.
Pegou uma carona com um amigo até a divisa da Venezuela e, como milhares de outros venezuelanos, atravessou a pé para o Estado de Roraima, no Brasil, caminhando por mais de quatro dias rumo a capital, Boa Vista. Por oito meses sobreviveu do que encontrava no lixo e dormiu na rua, até que foi encontrado por uma integrante do Exército Brasileiro, sendo levado até o abrigo da Operação Acolhida.
Sua vida parecia finalmente ter dado uma reviravolta ao receber uma proposta de emprego vinculada ao processo de interiorização da Operação. Ele seria levado, com mais uma dezena de venezuelanos, para dirigir carretas em uma transportadora do interior de São Paulo, com um ótimo salário, bonificações e ajuda para trazer sua família de Caracas quando estivesse estabelecido na cidade, inclusive com ajuda de custo para alugar uma casa para morar.
Chegou a São Paulo em fevereiro de 2020. Logo descobriu que as promessas eram muito diferentes da realidade. O alojamento prometido não existia, era obrigado a dormir na boleia do caminhão todos os dias. Se algo acontecia com o caminhão e a carga, tinha seu salário descontado. Como precisava de dinheiro para sua família na Venezuela, prontamente aceitava as propostas para vender suas folgas e dias de descanso. Afinal, onde ele ficaria nos seus dias de folga sendo que era obrigado a dormir no caminhão? A promessa de trazer sua família para morar em São Paulo nunca mais foi assunto com o dono da empresa. Quando ele ou seus colegas reclamavam, a resposta era sempre a mesma: “Se não gosta do trabalho, então que volte pra Venezuela pra passar fome”.
Falta de condições de trabalho e longa jornada de trabalho, começando às 4h da manhã e terminando perto da meia noite. Não tinha para onde ir, onde ficar. Viver longe de parentes e amigos, em um país com outra cultura, outra língua. Durante mais de um ano, trabalhou diariamente, sem descanso nem folga, dormindo enquanto conseguia entre uma carga ou outra, cochilando na estrada, colocando em risco sua própria vida e a de outros motoristas.
Pouco mais de um ano depois, já em 2021, a transportadora foi alvo do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que constatou os serviços forçados e trabalho análogo a escravo de 23 motoristas. Para os auditores fiscais do trabalho, os motoristas foram arregimentados de forma fraudulenta, com proposta enganosa de trabalho e sendo mantidos em regime de exploração, com jornada de trabalho muito além da combinada no contrato e pela condição de vulnerabilidade que se encontravam os motoristas.
“Os trabalhadores brasileiros não gostam do sistema de bonificação da empresa”, disse o dono para a equipe de auditores. “Já os venezuelanos, que não tem para onde ir, preferem receber mais em bonificação”, explicou, tentando justificar que a venda de folgas e outros meios de trabalho eram desejo dos empregadores, como se os motoristas tivessem alguma escolha. O sistema era confuso, com descontos variados e sem especificação. Para a fiscalização, o pagamento não fazia sentido e era feito de modo arbitrário pelo dono da empresa.
Sobre o caso, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a empresa. Houve o pagamento dos valores atrasados, horas extras, verbas rescisórias e multa para todos os motoristas. Além disso, a empresa também se comprometeu a pagar pelo deslocamento das famílias dos motoristas que ainda não tinham conseguido trazer os parentes para São Paulo. A família de José, que já tinha conseguido ir para Roraima, obteve assim as passagens de avião e ônibus para, depois de mais de dois anos, conseguirem se reunir. Foi a primeira vez que José pôde ver seu filho menor, que já tinha completado o primeiro ano de vida longe do pai.
Fiscalização e Justiça
Durante o ano de 2021, como no caso de resgate de José, a Defensoria Pública da União (DPU) fez parte de 53 operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), atendendo um total de 1.530 trabalhadores e atuando diretamente no resgate de 631 pessoas em situação análoga à de escravidão. São trabalhadoras e trabalhadores urbanos ou rurais que eram forçados a jornadas de trabalho exaustivo, pagamentos abaixo dos valores em lei ou condições degradantes e perigosas de trabalho, entre outras.
A instituição percorreu mais de 95 municípios neste período, atuando por todo o Brasil, e trazendo retorno de quase 8 milhões de reais em valores pagos aos trabalhadores e trabalhadoras resgatados nas operações, seja por meio de processos judiciais ou pelos Termos de Ajustamento de Conduta que foram assinados pelas empresas para evitar processos judiciais envolvendo suas marcas.
A DPU presta assistência jurídica integral e gratuita às vítimas resgatadas, em especial para resguardar os pagamentos das verbas trabalhistas e das indenizações por danos morais devidas pelo empregador. Além disso, o defensor também analisa os problemas pessoais da vítima, atuando em questões pontuais como regularização migratória, encaminhamento para a assistência social, questões documentais, reunião familiar ou no retorno das pessoas resgatadas ao seu lugar de origem.
“No caso da regularização e da questão documental o principal objetivo é permitir que o migrante que seja resgatado tenha acesso ao serviço público, aos outros direitos como a inserção em benefícios assistenciais ou os programas de acesso ao trabalho”, explica o defensor público federal Murillo Ribeiro Martins, secretário de acesso à Justiça da DPU, que também ressalta que este trabalho da Defensoria tem como principal objetivo evitar a revitimização, ou seja, que as pessoas resgatadas acabem novamente sendo aliciadas para trabalho análogo ao de escravo ou em condições degradantes.
Para o defensor, é importante a análise caso a caso quando há a atuação no resgate de trabalhadores. Sobre o caso de José, ele afirma a importância da atuação da DPU ao possibilitar a ida da família à São Paulo. “Um dos importantes resultados do acordo feito com a empresa foi garantir aos migrantes resgatados a reunião familiar. Manter os laços familiares é muito importante, especialmente pela dinâmica dos fluxos migratórios, onde os trabalhadores costumam se deslocar primeiramente ao local de trabalho para garantir uma renda que possa dar sustento aos familiares. No caso específico do José a família estava em Roraima, em uma situação precária, vivendo no abrigo”, comentou.
Grupo Especial de Fiscalização Móvel
Criado em 1995, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel é projeto que atualmente une a Auditoria Fiscal do Trabalho do Ministério da Economia, o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União e órgãos de segurança pública, como a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícias Civis dos Estados, que realizam missões por todo o Brasil em fiscalização de denúncias de trabalho análogo ao escravo.
Conforme dados da Superintendência de Inspeção do Trabalho (SIT), que mantem o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, desde sua criação o grupo foi responsável pelo resgate de mais de 56 mil trabalhadoras e trabalhadores em condição de trabalho análogo a escravidão, com a fiscalização de mais de 2500 estabelecimentos.
Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo
Sempre comemorada durante a semana do dia 28 de janeiro, a data foi criada em 2009 para homenagear os auditores-fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, além do motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados no dia 28 de janeiro de 2004 durante inspeção que apurava denúncias de trabalho escravo em fazendas na região do município de Unaí, interior de Minas Gerais.
Este episódio ficou, desde então, conhecido como Chacina de Unaí, e marca importante data para chamar a atenção sobre a existência do trabalho escravo no Brasil e mobilizar a sociedade pela sua erradicação.
Grupo de Trabalho de Assistência às Trabalhadoras e Trabalhadores Resgatados em Situação de Escravidão
Para coordenar as ações de fiscalização de trabalho escravo organizadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel e promover a assistência jurídica de pessoas resgatadas de situação de escravidão, a Defensoria Pública da União instituiu grupo de trabalho específico sobre o tema.
Cabe ao Grupo de Trabalho identificar dificuldades políticas e processuais à prevenção e enfrentamento do trabalho escravo com o objetivo de propor e debater soluções, também como monitorar casos relacionados a trabalho escravo em trâmite na DPU, consolidando os dados necessários a subsidiar políticas públicas visando à erradicação do trabalho escravo.
Operação Acolhida
A Operação Acolhida, criada em março de 2018, é a resposta do governo brasileiro ao fluxo migratório proveniente da Venezuela, devido à crise política, econômica e social que assola o país vizinho. É baseada em três pilares: ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização, que é o processo em que os migrantes são enviados para outros Estados do Brasil para ocupar postos de trabalho.
A DPU atua na operação desde sua criação em 2018, com equipes de defensores e servidores públicos federais que prestam assistência jurídica integral e gratuita para os venezuelanos que ingressam no território nacional. Dentre as principais áreas de atuação da operação, se destacam os processos de reunificação familiar e a prestação de assistência para crianças desacompanhadas, que cruzaram a fronteira sozinhas para o Brasil.
*Os nomes utilizados são fictícios para resguardar a integridade das vítimas. Todos os fatos relatados são reais e ocorreram em único caso de atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel no ano de 2021 no Estado de São Paulo.
Assessoria de Comunicação
Defensoria Pública da União