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Máquina de moer a história: entenda a inconstitucionalidade do marco temporal
Brasília – Hoje, 19 de abril, o Brasil celebra o Dia dos Povos Indígenas, mas não há o que comemorar. Neste momento, milhares de brasileiros indígenas estão marginalizados e não têm garantia a um dos direitos básicos: a terra.
A vulnerabilidade desses povos é tamanha que o governo não tem dados atualizados de quantos indígenas estão vivos. Estima-se que sejam 900 mil, mas o número é resultado de um censo feito há 13 anos, em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para iniciar uma mudança nesse cenário, a jovem liderança Jaqueline Goncalves Porto, conhecida como Kuña Aranduhá na língua Guarani, é uma das mulheres que luta diariamente pelo fim do chamado marco temporal.
“Ele vai contra os nossos direitos e favorece os latifundiários. Caso continue vigente será uma continuidade da invasão de 1500, mas agora com o amparo e o aval do Estado Brasileiro. É como se estivessem fazendo de papel higiênico a Constituição Federal de 1988”, afirma.
A tese do marco temporal, criada em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para demarcar o território Raposa Serra do Sol, em Roraima (RR), foi pensada especificamente para o caso. No entanto, por falta de entendimentos jurídicos, existe a tentativa de fazer com que ela sirva de parâmetro para as demais demarcações de terras indígenas no Brasil. Mas a consequência disso é o travamento dos processos.
Isso porque, ao proferir decisão favorável aos indígenas durante o julgamento de um conflito com produtores de arroz, o Supremo usou como argumento o fato de que o povo da Raposa Terra do Sol já estava no território quando foi promulgada a Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O posicionamento acabou criando precedentes para que outros casos de demarcação fossem analisados usando a mesma lógica e limite temporal.
Agora, em 2023, o STF se aproxima de uma reanálise do tema para decidir se a tese de demarcação se aplica ou não a todos os povos. E a Defensoria Pública da União (DPU) atua no processo, na condição de amicus curiae (amigo da corte), contribuindo com informações e estudos sobre a questão que considera inconstitucional.
Para o defensor público federal Bruno Arruda, que fez a sustentação oral pela DPU no STF durante o julgamento do processo, o direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas é natural. “Independentemente de qualquer lei, a terra é deles. Esse direito já existia, inclusive, antes de toda e qualquer Constituição”, enfatiza.
A defensora pública federal e membro do Grupo de Trabalho Comunidades Indígenas na DPU Daniele Osório acrescenta ainda que, na década de 80, muitos povos tinham sido expulsos de seus territórios e estavam sendo ameaçados. Por isso, na promulgação da Carta Magna não ocupavam a terra que hoje precisa ser demarcada.
“Se a gente pegar a história dos povos indígenas nos anos 80, as expulsões continuavam acontecendo. Pegamos a história dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, por exemplo. Temos várias histórias de despejos forçados ou praticados pelas forças de segurança ou mesmo por milícias privadas. Foram violentos, sem ordem judicial. O número de homicídios de lideranças indígenas nessa época também é muito grande. Inclusive a maior liderança desse povo, Marçal de Souza, foi assassinado nesta época”, conta a defensora.
A luta e a resistência
Kuna Aranduhá tem uma explicação didática para explicar a inconstitucionalidade do marco temporal. “Para nós a terra não é mercadoria. Ela faz parte de nós, do nosso corpo, da nossa existência, da nossa ancestralidade. E para o não indígena ela é tratada como mercadoria. Parte muito fundamental a ser explorada pelo capitalismo”, diz.
Essa diferenciação de o que é território para o homem branco e o indígena é essencial quando se fala em marco temporal. Mas não é só isso, os povos originários ocuparam seus territórios muito antes do descobrimento das Américas.
A violência latifundiária de que se fala hoje só aborda os 523 anos de luta e resistência dos povos indígenas desde a colonização portuguesa em 1500. Os que resistiram foram massacrados ou colocados em reservas com um espaço que está superlotado e que não pode ser ampliado nos dias de hoje por causa da tese do marco temporal.
“Antes de aqui ser Brasil já existiam povos indígenas. Temos que reconhecer o direito desses povos que vêm sendo massacrados há anos”, disse Kuna Aranduhá, complementando. “O Brasil precisa reconhecer que é indígena. A miscigenação começou com o estupro de nossas mulheres. E todo o direito assegurado a esses povos não é só nosso. Demarcar uma terra indígena não é só demarcar o território é assegurar a preservação da biodiversidade.”
Para ela, caso o Supremo estenda a tese do marco temporal como modelo real para a demarcação de terras, deixará um rastro de sangue na história do país. “Muitas comunidades vão resistir e vai acontecer um genocídio, um massacre dos povos indígenas em pelo 2023. Mas a gente tem esperança de que isso não aconteça”, observa.
A visita da ministra presidente do Supremo, Rosa Weber, à Terra Indígena do Vale do Javari significou uma aproximação com os povos originários. “É até histórico uma ministra do STF pisar em terras indígenas. Mas é importante ela sair da selva de asfalto e pisar em lá. É histórico ela falar com a gente e ouvir”, conclui.
Atuação do GT Indígena
O Grupo de Trabalho Comunidades Indígenas é responsável por promover a defesa dos interesses das comunidades, a educação em direitos e a assistência às comunidades impactadas por grandes empreendimentos quando houver grupos indígenas envolvidos.
A defensora Daniele Osorio explica que o marco temporal é a principal pauta do GT neste momento. “A concentração fundiária no Brasil é uma das maiores do mundo. E por ser um sistema que dá muito dinheiro, as pessoas que detém um grande poder econômico e, também, têm a posse das terras. Isso acarreta, obviamente, a expulsão de povos indígenas, das comunidades tradicionais e dos quilombolas”, diz.
“Esse modelo econômico de plantation prejudica o Brasil porque milhões de pessoas que querem viver da agricultura familiar nos moldes tradicionais são alijadas do território e ficam relegadas à miséria. Quem impõe a miséria aos povos indígenas é o Brasil”, explica.
Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União