DPU – Direitos Humanos

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DPU se posiciona contra marco temporal em evento convocado pelo cacique Raoni no Xingu

São José do Xingu – Azul no céu, verde nas árvores, diversas cores nos cocares. Preto na tinta pintada em muitos corpos e o tom vermelho na terra batida, rubra como o sangue derramado por tantos, durante décadas, nas lutas enfrentadas pelos povos indígenas para garantir os próprios direitos.

Beleza de encher os olhos, emoção de encantar a alma. Cantos, danças e uma babel indígena formada pelas diversas línguas das várias etnias. Sentimentos de tristeza e revolta pelas vidas já perdidas, pelo descaso, pela covardia e omissão. Ao mesmo tempo, força, resistência, empoderamento e até esperança de que novos tempos virão.

Foi assim o histórico e emocionante “II Chamado do Raoni: Encontro das Lideranças Indígenas”, realizado, entre os dias 24 e 28 de julho, na Aldeia Piaraçu, no município de São José do Xingu, a 932 km de Cuiabá, no estado do Mato Grosso. O evento foi promovido pelo Instituto Raoni e demais lideranças dos povos indígenas do Território Capoto-Jarina.

A Defensoria Pública da União (DPU) marcou presença por meio dos defensores públicos federais Igor Roque, indicado pelo presidente da República e já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para ser o novo líder da instituição nos próximos dois anos, e Renan Sotto Mayor, defensor regional de direitos humanos no Mato Grosso.

“Se tem um lado bom de ser defensor, é poder falar, dizer o que pensa e mostrar o nosso lado. Eu aproveitei a oportunidade de vir aqui para reafirmar publicamente o compromisso da Defensoria Pública da União com os povos indígenas do nosso país. (…) A Defensoria Pública tem uma missão constitucional que nós vamos seguir e cumprir. (…) A Defensoria Pública tem um lado. A Defensoria Pública está do lado do negro, do pobre, do indígena, da mulher e do vulnerável. Essa é a nossa pauta”, afirmou Igor Roque a uma plateia atenta.

“A nossa Constituição Federal de 88 não deixa dúvida, ela é clara. Ela garante a terra, ela garante o território indígena. (…) O constituinte de 88, para trazer uma maior segurança à população indígena brasileira, ressalvou de maneira expressa, no artigo 231 da nossa Constituição, o direito à terra pelos indígenas. A Defensoria Pública da União vai fazer valer este artigo, esse direito”, explicou o defensor. “Se internamente não conseguirmos garantir o cumprimento desse direito aos povos indígenas brasileiros, a Defensoria Pública da União vai para fora, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para garantir esse direito que é dos povos originários”, completou Roque.

“A nossa Constituição garante o direito originário dos povos indígenas ao território e o texto constitucional foi fruto de grande mobilização dos povos indígenas. Muitos dos presentes neste encontro foram até Brasília durante a constituinte, como o Cacique Raoni, Megaron, e tantos outros. Eles foram lá e colocaram na Constituição os artigos 231 e 232”, disse Renan Sotto Mayor. “A DPU vai sempre estar junto porque a gente tem essa função: de defesa de direitos humanos”, afirmou.

“Esse é um momento muito bonito e emocionante, com lideranças indígenas do Brasil inteiro, buscando reafirmar os direitos dos povos indígenas e a Defensoria Pública da União tem uma missão central nessa pauta de defesa dos direitos humanos dos povos indígenas”, concluiu o Mayor.

O evento

Mais de 800 pessoas, incluindo lideranças indígenas de 54 povos, compareceram ao evento promovido pelo cacique kayapó Raoni Metuktire, mundialmente conhecido pela luta a favor da preservação dos direitos dos indígenas e da defesa da Amazônia. A reunião teve por objetivo debater as mudanças climáticas e o marco temporal.

Do dia 24 ao 26, as atividades foram realizadas pelos e para os povos indígenas. Nos dias 27 e 28, aconteceram as participações dos convidados. Na tarde de quinta (27), o defensor Renan Sotto Mayor fez parte da mesa “Processos de resiliência: Conhecimento histórico e político do movimento indígena”, ao lado do indigenista Sydney Possuelo, da antropóloga Lêda Leitão Martins e do cacique kaiapó Megaron Txucarramãe, um dos mais importantes líderes indígenas do país.

Além dos defensores públicos federais, o “II Chamado do Raoni” contou ainda com as presenças da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana.

O evento foi um momento de reflexão sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de luta contra o marco temporal e de reivindicação de atitudes dos três poderes do Estado brasileiro contra as mudanças climáticas e seus efeitos, mas também foi marcado por boas notícias.

A presidenta da Funai Joenia Wapichana anunciou que a autarquia aprovou os estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (TI) Kapôt Nhĩnore. Localizada nos municípios de Vila Rica e Santa Cruz do Xingu, ambos no Mato Grosso, e São Félix do Xingu, no Pará, a TI abriga a aldeia onde o cacique Raoni Metuktire nasceu e é uma área sagrada para o Povo Kayapó. Nos próximos 90 dias, o documento estará aberto para contestações. Após este prazo, a Funai vai analisar os possíveis questionamentos e encaminhar o pedido de homologação da TI ao Ministério da Justiça. Os Kayapó reivindicam o território desde o começo da década de 1980. Atualmente, a maior parte do território é ocupado por fazendas.

Já a ministra Sônia Guajajara anunciou que 32 Terras Indígenas foram mapeadas para que ações de desintrusão – retirada de quem não é originário – sejam feitas até o final do ano. Ela disse que, neste ano, já foram homologados seis territórios e lembrou que, em dez anos, foram homologadas apenas 11 terras. A ministra afirmou que pretende ampliar esse número nesta gestão. Sônia também adiantou que, em 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, mais terras devem ser homologadas ou estudos abertos.

O Manifesto

A primeira edição do “Chamado do Raoni” aconteceu em janeiro de 2020, antes da pandemia. Daquele primeiro encontro, saiu uma carta de compromisso das lideranças, intitulada “Manifesto do Piaraçu”. O evento deste ano gerou um novo documento, uma carta com reivindicações sobre o marco temporal, mudanças climáticas e ações do ser humano sobre a natureza.

No “Manifesto do Chamado do Cacique Raoni Metuktire – Grande Encontro das Lideranças Guardiãs da Mãe Terra”, 54 povos indígenas do Brasil pedem que o Estado brasileiro se posicione concretamente contra o marco temporal até 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas. Além disso, no documento, são cobradas ações contra os impactos das mudanças climáticas e pela aceleração da demarcação de Terras Indígenas.

Leia a íntegra do manifesto abaixo:

“Manifesto do Chamado do Cacique Raoni Metuktire ‘Grande Encontro das Lideranças Guardiãs da Mãe Terra’

Aldeia Piaraçu, 26 de julho de 2023

Assunto: Posicionamento contrário ao Marco Temporal e a favor da defesa dos direitos dos Povos Indígenas

Nós, lideranças indígenas, representantes de 54 Povos Indígenas dos seis biomas brasileiros, atendendo o Chamado do Cacique Raoni Metuktire, na aldeia Piaraçu Terra Indígena Kapot-Jarina, MT entre os dias 24 a 28 de julho de 2023, exigimos do Estado Brasileiro uma posição concreta sobre o Recurso Extraordinário 10.17365/SC popularmente chamado “Marco Temporal”, Estamos muito preocupados com a situação territorial não somente dos povos indígenas que habitam a região amazônica, mas também das demais regiões do Brasil e do mundo.

O Marco Temporal tem uma interpretação que desconsidera nossa realidade histórica e cultural, além de violar tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração dos Povos Indígenas da ONU, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a consulta livre prévia e informada, além de afirmar a obrigação do governo em reconhecer e proteger os valores e práticas tradicionais, culturais e espirituais próprias dos Povos Indígenas. Ao restringir a demarcação apenas as Terras Indígenas que estavam estabelecidas antes de 5 de outubro de 1988, ignora nossa memória e história por ações de colonizadores, latifundiários e empreendimentos econômicos de deslocamentos forçados, violências, massacres e expulsões vividos em nossos territórios tradicionais o que resultou em perdas irreparáveis para nossas culturas e modo de vida.

Por tempos imemoráveis, nós Povos Indígenas, temos sido guardiões e guardiãs das florestas, dos rios, do ar e dos animais das terras por onde nossos ancestrais caminharam. Essas terras representam não apenas nosso lar, mas também nossa identidade cultural, nossas tradições, ciência que sempre existiram de forma conjunta e equilibrada com a natureza. É fundamental compreender que a posse dessas terras não se trata apenas de um aspecto material, mas de um elemento essencial para a nossa existência.

A aplicação do Marco Temporal teria como consequência a exclusão de milhares de indígenas de nossos territórios tradicionais, comprometendo nossa subsistência, nosso modo de ser e nossa autodeterminação como Povos Indígenas violando nossos direitos já garantidos. Além disso, abriria precedentes para a invasão e exploração de nossas terras por interesses econômicos que afetam não apenas nós, mas que de acordo com pesquisa feita pelo IPAM, 55 milhões de hectares de áreas nativas serão destruídos e que 20 bilhões de toneladas de CO2 serão emitidos.

Diante dessa realidade, exigimos dos três poderes da República que:

O Ministério da Justiça cumpra com o seu papel de demarcar as Terras Indígenas, dando prioridade às Terras Indígenas judicializadas e em situação de risco, como por exemplo no caso dos territórios dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

A desintrusão imediata de todas as Terras Indígenas já demarcadas e homologadas, não se restringindo apenas aquelas que se encontram na DPF 709, como por exemplo a T.I Urubu Branco, T.I Rio dos Índios e tantas outras que se encontram na mesma situação. Demandamos que os órgãos competentes cumpram a legislação garantindo sua proteção, monitoramento e fiscalização.

Proteção permanente de nossos direitos que estão previstos em lei e tratados internacionais, de todas as Terras Indígenas independente do governo que esteja a frente do Estado.

Respeite e cumpra o direito a Consulta Prévia, Livre e Informada conforme os Protocolos Autônomos dos Povos Indígenas sobre todos os empreendimentos que afetam seus territórios. Queremos ser consultados em todas as suas fases, desde o planejamento para evitar assédios, cooptação e geração de conflitos de interesses entre as comunidades indígenas e que como Belo Monte, tenham suas condicionantes cumpridas com os povos impactados.

Que a mineração no entorno e dentro dos nossos territórios respeitem todos os direitos dos Povos Indígenas e não sejam licenciados antes da construção e aprovação do Plano Base Ambiental do Componente Indígena. Exigimos que os empreendimentos que atropelaram os processos legais de licenciamento, sejam embargados e nos casos de PBA autorizados, as organizações indígenas devem ser as executoras desses recursos. Exigimos que sejam destruídas todas as formas de garimpo, expulsos os invasores e responsabilizados seus financiadores. Que seja garantido aos Povos Indígenas impactados pela exposição ao mercúrio a testagem em massa, o acesso ao tratamento da saúde e a segurança alimentar.

Que todo e qualquer arrendamento ou parceria agrícola dentro de nossas Terras Indígenas seja condenado por ser inconstitucional e foge do modelo de sustentabilidade cultural, fortalecendo o agronegócio que causa destruição dos nossos territórios, conflitos internos, expulsões e mortes do nosso povo. Exigimos que o arrendatário, o maior responsável pela destruição de nossos territórios, seja punido de acordo com todos os crimes praticados.

Seja assegurado aos povos indígenas o conhecimento e entendimento sobre o que é o Mercado de Carbono no Estado Brasileiro e os impactos aos nossos territórios. As atuais negociações existentes no mercado de carbono devem ser anuladas, pois não respeitam a especificidade e os direitos dos povos indígenas e a biodiversidade de seus territórios. É necessário à garantia da participação dos povos indígenas dos seis biomas brasileiros na construção de uma legislação justa, obedecendo nossos direitos originários, constitucionais e internacionais.

Fortaleçam e estruturem institucionalmente, garantindo a ampliação do orçamento para o Ministério do Povos Indígenas – MPI, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI, o Instituto de Brasileiro de Meio Ambiente – IBAMA; o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade – ICMBio; a Defensoria Pública da União – DPU; o Ministério Público Federal – MPF, a Secretaria de Especial de Saúde Indígena – SESAI, e que seja criada a Secretaria Especial de Educação Escolar Indígena no Ministério da Educação – MEC.

Seja realizado de caráter de urgência concursos para servidores da FUNAI e SESAI para uma reestruturação da equipe que realmente atue a favor dos direitos dos povos indígenas, garantindo vagas para indígenas.

Seja revogado as portarias que afetam os nossos direitos e que não tiveram a consulta devida, como por exemplo a 60/2015.

Seja destinada para os Povos Indígenas as florestas públicas não destinadas, de acordo com uso e costumes de cada povo.

Concordamos em parte com o Ministro Alexandre de Moraes que reconhece os direitos indígenas constitucionais sobre os nossos territórios, mas discordamos do argumento de indenização pela terra nua. Não consideramos justo compensar pessoas e empresas que são responsáveis pelo assassinato de nossas lideranças e massacre do nosso povo que historicamente lutam pelo nosso território. Nós é que deveríamos ser indenizados pelos anos de violências vividos e por receber uma terra devastada. Vale destacar que os povos indígenas não se opõem ao desenvolvimento da nação brasileira, pelo contrário, estamos dispostos a contribuir com nossas perspectivas, ciência e saberes para o desenvolvimento do Brasil, desde que sejamos convidados, consultados, ouvidos e respeitados, especialmente quando o Estado pretender implementar obras que afetem nossas terras e nosso modo de vida tradicional.

Exigimos que o Estado brasileiro nos responda até dia 09 de agosto de 2023, como marco do dia internacional dos povos indígenas. Nossos ancestrais há muitos anos veem avisando que a saúde da terra não é responsabilidade só nossa, ela é responsabilidade de todos, se o céu cair, a terra incendiar e as águas subirem, todos nós iremos morrer, não há dinheiro que compre outro planeta.

Os espíritos da terra estão ficando furiosos. Quantos manifestos, cartas e protestos serão necessários para que vocês tomem uma atitude humana para proteger o planeta e as futuras gerações? Não estamos apenas falando da vida de nossos povos estamos também falando de suas vidas e de seus herdeiros, vocês não se importam?

O Cacique Raoni já atendeu o seu chamado e vocês quando irão atender o nosso?”

Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União