Rio de Janeiro – A Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) ajuizaram Ação Civil Pública (ACP) requerendo que a União e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) cumpram as obrigações assumidas junto à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na ocasião da inclusão do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo à lista do patrimônio mundial, ocorrida em julho de 2017, na 41ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial. São obrigações assumidas pelo Estado brasileiro referentes à conservação, promoção e valorização do patrimônio citado, localizado no Rio de Janeiro. A ACP se fez necessária diante da evidente “inércia institucional na proteção do referido bem”.
Na ACP, DPU e MPF pedem que a Justiça determine que a União e o Iphan:
1. Em prazo não superior a 30 dias, instalem, reúnam e garantam o funcionamento permanente do Comitê Gestor do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, instituído pela Portaria Iphan nº 360, de 30/08/2018;
2. Em prazo não superior a 60 dias, apresentem ao juízo cronograma de trabalho contendo a previsão, mês a mês, das medidas a serem adotadas para dar cumprimento às demais obrigações contraídas junto à Unesco;
3. Em prazo não superior a 180 dias, apresentem ao juízo o Plano de Gestão exigido pela Convenção do Patrimônio Mundial e pela decisão do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco. O Plano deverá ser elaborado e aprovado pelo Comitê Gestor do Sítio Arqueológico e contemplar as medidas estruturais voltadas ao planejamento, implementação e monitoramento da gestão do bem;
4. Apresentem ao juízo relatórios anuais contendo os resultados obtidos no período em relação às ações previstas no Plano de Gestão, pelo prazo de cinco anos.
Além da obrigação contraída internacionalmente junto à Unesco, a partir da patrimonialização do Sítio Arqueológico, a proteção de patrimônio cultural é obrigação constitucional da União e do Iphan, nos termos do art. 216 da Constituição Federal.
“A mora administrativa da União e do Iphan no cumprimento das obrigações contraídas junto à Unesco fragiliza a participação do Estado brasileiro em nível internacional e importa em descaso frente a importante patrimônio cultural material representativo da história afro-brasileira, contribuindo para sua depreciação temporal e atual condição de abandono”, destacam os defensores e procuradores.
A ACP foi protocolada na quarta-feira, dia 08, e assinada pela defensora pública federal Rita Cristina de Oliveira (coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU); pelo defensor regional de Direitos Humanos no Estado do Rio de Janeiro Thales Arcoverde Treiger (membro do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais); e pelos procuradores da República Sergio Gardenghi Suiama (22º Ofício Cível – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural) e Jaime Mitropoulos (20º Ofício Cível – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural).
Sobre a atuação da DPU
Desde 2019, a DPU, por meio do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais, acompanha os projetos relacionados ao Cais do Valongo, e tem articulado ações e políticas voltadas ao cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro para valorização do Sítio Arqueológico e sua zona de amortecimento, como medida de justiça, verdade, memória e reparação à população negra do País.
No primeiro dia deste mês, a DPU e o MPF convocaram reunião para tratar das medidas relacionadas à conservação e valorização da área e cobrar informações sobre os projetos que deveriam estar sendo executados. O encontro foi realizado no Prédio do Armazém Docas Dom Pedro II e contou com a participação de representantes do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), que recebeu recursos internacionais para revitalização e cartografia do Cais; do Iphan; da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio; de entidades e movimentos da região reconhecida como Pequena África; além da Defensoria e do Ministério Público.
Sobre o Cais do Valongo
Mais do que o principal cais de desembarque de africanos escravizados, o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo é o único que se preservou materialmente, detendo acervo de achados arqueológicos de aproximadamente 510 mil peças, sendo o maior e o mais rico que se tem notícia, uma vez que é composto por objetos que evidenciam a pluralidade de matrizes africanas trazidas para as Américas e a capacidade das pessoas em situação de escravização em expressar suas marcas identitárias ao mesmo tempo em que as reinventavam no novo contexto.
Para Milton Guran, que é antropólogo, ex-membro do Comitê Científico Internacional da Unesco para o Projeto Rota do Escravo e coordenador do grupo de trabalho encarregado do Dossiê de Candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo é o mais importante monumento ligado à Diáspora Africana fora da África. “Não pertence apenas ao Brasil e ao seu povo, é um Patrimônio Mundial de memória sensível, representa um alerta contra um crime que a Humanidade não aceita que volte a ser praticado. Ao abandonar o Valongo, o governo brasileiro, além de menosprezar o que ele representa para a memória do mundo, falta com as suas obrigações junto à Unesco e isso pode levar à perda da titulação, por quebra de contrato. Nós não merecemos, enquanto nação, um golpe tão vergonhoso.”
O Cais do Valongo recebeu o título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 2017 e foi declarado pela organização como “a mais importante evidência física associada à chegada histórica de africanos escravizados no continente americano”.
Com forte simbolismo, enquanto registro de eventos traumáticos e dolorosos vivenciados pelas populações escravizadas, o Cais do Valongo tornou-se espaço de referência para a sociedade civil de matriz africana, que reivindica a preservação da memória, entendendo-o como lugar sagrado, de herança afro-brasileira. Um dos atos mais simbólicos é a Lavagem do Cais, realizada anualmente no mês de julho e que teve sua décima edição neste ano de 2021.
Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União