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Após três anos, bolivianos resgatados em oficina de costura em SP obtém indenização

São Paulo – Três anos após serem resgatados de situação de trabalho análogo ao de escravo em uma oficina de costura em bairro na capital de São Paulo, três trabalhadores bolivianos receberão valores a que têm direito em ação trabalhista movida pela Defensoria Pública da União (DPU) contra a empresa Anfa, detentora da marca de roupas Program. ‌No mês de agosto, a Justiça do Trabalho proferiu sentença de liquidação para pagamento dos valores referentes aos direitos trabalhistas e rescisão de trabalho devidos e os valores foram liberados nesta última segunda-feira, 27 de novembro.

O caso partiu de denúncia realizada em 2020 pela Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo do Município de São Paulo (Comtrae) e pelo Projeto Canicas de suspeita de trabalho análogo ao escravo em uma oficina de costura no bairro Casa Verde Alta, zona norte da capital. Uma equipe de fiscalização formada por auditores fiscais do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo e por integrantes da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e da DPU vistoriou o local.

A equipe encontrou um casal de trabalhadores com três crianças e uma trabalhadora com uma bebê de sete meses, todos de nacionalidade boliviana e em situação migratória indocumentada. Eles estavam trabalhando e vivendo no local onde funcionava uma oficina de costura a serviço exclusivo da marca Program por encomenda da empresa Anfa. As empresas realizavam contratos de fornecimento que serviam para encobrir a ingerência empresarial da marca na cadeia produtiva da oficina, uma fraude para cortar custos.

De acordo com a denúncia, os migrantes eram submetidos a uma jornada exaustiva de trabalho de 16h diárias; impedimento de acesso à serviços de saúde, inclusive com exigência de compensação de horas para realização de pré-natal; constatação de servidão por dívida, com a venda irregular de bens com desconto na remuneração dos trabalhadores; e diversos atos e condições degradantes, como cortes nas refeições e restrição à cozinha da casa. Todos estes elementos caracterizam o reconhecimento do trabalho análogo ao de escravo.

“Demonstrou-se que a empresa se beneficiava da mão de obra informal de trabalhadores migrantes aliciados em regiões empobrecidas de países fronteiriços e em condição de vulnerabilidade extrema, submetidos a viver em condições precárias no mesmo local em que trabalham, juntamente com seus filhos, praticamente sem descanso”, afirmou João Paulo Dorini, defensor regional de direitos humanos em São Paulo e autor da ação.

Condição degradante

Os empregados trabalhavam sem o devido registro em Livro de Registro de Empregados e não lhes eram garantidos nem mesmo os direitos trabalhistas mínimos correspondentes ao contrato de trabalho, como o piso salarial da categoria, o respeito ao limite legal das jornadas de trabalho, o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e Previdência Social, além de condições seguras e saudáveis de trabalho e alojamento.

Entre os resgatados, estava um casal formado pelos costureiros Eloísa*, com sete meses de gravidez, e Robério*, com três filhas de 12, sete e um ano. ‌Eles viviam num quarto adaptado da antiga cozinha no pavimento térreo, em cômodo contíguo e na mesma casa onde estava instalada a oficina de costura. Conforme verificado, as crianças passavam o dia confinadas neste quarto, sob os cuidados da filha mais velha.

Além de cuidar das irmãs, a jovem de 12 anos ainda cuidava do bebê de sete meses de Antônia*, a terceira trabalhadora resgatada que estava sujeita à mesma jornada extenuante de trabalho, agravada pela dupla função de cozinheira e costureira. ‌As instalações elétricas se encontravam em situação precária, improvisada e sobrecarregada. Além disso, o portão de entrada era mantido trancado, e não havia rotas de saída ou de fuga, para rápida evacuação em caso de incêndio.

Os trabalhadores pagavam com o trabalho toda a despesa da oficina de costura, como aluguel, água, luz, além da moradia e alimentação.

Reparação Tardia

“Este é um caso bastante representativo. Temos atualmente muitos casos de escravidão contemporânea no Brasil, um problema real que ainda está longe de ser solucionado e que ocorre em diversos contextos territoriais e geográficos”, comentou João Paulo Dorini. O defensor aponta que a precarização das relações de trabalho acabou por afetar as relações socioeconômicas da população, o que facilita a exploração de trabalhadores e as condições degradantes que levam à escravidão contemporânea.

Neste caso, a DPU ajuizou Reclamação Trabalhista em outubro de 2020, requerendo, com pedido liminar, a antecipação da liberação das verbas rescisórias pretendidas e o bloqueio de valores ou bens aptos para a futura e provável execução da decisão. A ação também requeria o reconhecimento do vínculo de empregado dos trabalhadores para com a Anfa/Program, com todos os direitos reconhecidos, como o pagamento de horas extras, piso da categoria e verbas rescisórias, entre outros.

Os trabalhadores bolivianos obtiveram decisão favorável na Justiça do Trabalho em março de 2021, com decisão em recurso favorável no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em fevereiro de 2022. Em novembro de 2023, a Justiça do Trabalho expediu despacho liberando os valores aos trabalhadores. O grande lapso foi um problema para os migrantes, inclusive com uma delas retornando ao seu país de origem.

“Devemos buscar novos mecanismos, formas e procedimentos pelo Judiciário e sistema de justiça como um todo para solucionar esses graves casos de violação de direitos humanos”, comentou Dorini. O defensor apontou que, apesar do tempo de três anos para a resolução de um processo não ser realmente incomum, ainda há muito que caminhar na reparação das vítimas. “A possibilidade de revitimização neste contexto é muito grande e foi o que quase aconteceu com essa família pelas muitas dificuldades financeiras e sociais que eles suportaram ao longo desses três anos”.

*Nomes fictícios para proteger a identidade dos assistidos.

Assessoria de Comunicação Social
Defensoria Pública da União